sábado, 25 de fevereiro de 2017

UM MUNDO ONDE EXISTE O TRABALHO



Tariq sempre tem o mesmo sonho. Ele sonha que está trabalhando, mas não tem ideia do que seja tal coisa. O que é o trabalho? Ele passa as oito horas de sono sonhando estar em frente a um computador, fazendo coisas que não entende, para ganhar um pedaço de papel e comprar coisas que não entende ou entende e não entende porque precisa do papel para adquiri-las.

No Edifício não existe o trabalho.

Tabelas de Excel, café, uma barriga saliente que não reconhece como a dele, uma caneca com a ilustração de um homem com uma espada luminosa em cima de sua mesa. Ele não entende porque sonha todos os dias com o mesmo ser do Mundo Posterior, porque não consegue se desligar dele como todas as pessoas normais do Edifício?

Tariq acorda cansado depois de uma jornada de “trabalho”, tenta se manter acordado pra não ter que encarar o “trabalho”. Tariq usa drogas verdes, roxas e vermelhas. Ingere as drogas com cerveja vagabunda, tenta ficar acordado. Talvez devesse tentar aquela coisa azul que estão distribuindo por aí.

Pinta os olhos com maquiagem preta pra esconder as olheiras, mas chega uma hora que precisa dormir, que precisa “trabalhar”, que precisa encarar chefe, cafeína, computadores, planilhas, cobranças, metas, clientes gritando e piadas que não consegue entender.

Toca a bateria cada vez com mais raiva, tenta extravasar, tenta fugir, tenta acordar da realidade do Edifício.

Será que é obra dos Duendes Mecânicos? Será que os putos tem algum dedo robótico cheio de circuitos nisso? Tariq está perdendo cada vez mais a sanidade, está cada vez mais frustrado pelas frustrações do Mundo Posterior que não deveriam atingi-lo ali. Tão Longe. No Edifício.

Tariq está apaixonado por uma garota de seus sonhos, uma garota que nem vive na mesma realidade que ele. Morena. Trabalha na baia ao lado. Queria que o puto levantasse sua barriga e fosse lá conversar com ela, mas apenas pode observá-la passar, de tempos em tempos. Tariq quer gritar enquanto sonha! Quer se estapear para acordar. Mas dorme, sempre as oito horas e só acorda quando bate o ponto para ir embora do serviço.

Gustavo Campello

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

TRÊS AMORES: HÁ 15 ANOS



"Oh, meu amigo desses anos dourados.
Me ajude a deixá-lo!"

Hoje, 20 de Fevereiro de 2017, faz 15 anos que meus olhos bateram nela pela primeira vez. Ela tinha só 17 anos, eu com meus 21, me enganou que usava óculos e me perdi completamente em um caldeirão de sentimentos que não compreendo até hoje. Tivemos uma história de anos depois disso. Uma história que acabou, mas que continua muito importante na minha vida.

Lembro-me de seu sorriso, de seus períodos depressivos e de seus momentos Beatrix Kiddo onde teria me fatiado em dois com uma Hattori Hanzō se tivesse a chance.

Nos conhecemos na faculdade, era 20/02/2002 às 20:02hs... um encontro cabalístico, parecia que era destino, já fiz planos pra vida toda, planejando casamento, casa de campo, bodas de prata e o caralho à quatro.

Tempos depois nossas vidas tomaram rumos divergentes, foi um baque, sangrei como jamais havia sangrado, chorei como jamais havia chorado e sofri como jamais havia sofrido. Mas as cicatrizes invisíveis ficaram, as marcas eram eternas e para sempre, continuam até hoje no meu corpo, no meu cérebro, na minha alma.

Não tem como ouvir U2 sem lembrar dela.

Não tem como assistir uma comédia inglesa sem lembrar dela.

Não tem como olhar pra trás e não olhar pra ela.

Nem tudo era perfeito, afinal ela tinha um chulé horrível, mas vamos deixar as coisas ruins no passado, né? As brigas e os ciúmes doentios.

Foi meu primeiro amor, a primeira mulher que fiz amor, que dormi ao lado e que significou o infinito e além, mas não foi a única que tocou minha alma desta maneira, apenas a primeira.

Engraçado que no 15º aniversário eu ainda me lembre de você, mesmo estando tão longe, nesses alpes, com outro e que já não signifiquemos o que significamos um para o outro.

No meu emprego novo a primeira cliente que atendi tinha o seu nome, parecia algo kármico, mas era apenas o universo, agindo como sempre age de maneira caótica para me atingir.

Faz tempo que não nos falamos, mas onde estiver, hoje, pensei em você e espero que esteja feliz, minha eterna companheira, minha eterna amiga e uma das cicatrizes no meu coração, a primeira.

Gustavo Campello
Texto em Itálico: Extraído do Filme "Além da Linha Vermelha" (1998) de Terrence Malick

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

KRAFTWERK



Marcel estava casado e esperando sua primeira filha que iria nascer em breve, portanto sua esposa não poderia ir no show do Radiohead, tinha um ingresso sobrando.

- Fala, Marcel! – Vitor atendia o telefone após olhar no identificador de chamadas.

- Quer ir no show do Radiohead?

- Querer não é poder!

- Agora é, to com um ingresso sobrando!

Era uma espécie de despedida de solteiro do amigo de longa data, Vitor sabia que provavelmente jamais iriam a um show de novo. Marcel estava adentrando na vida de casado, com outras responsabilidades, de ser marido, pai e mais um monte de coisas que essas coisas acarretam. Vitor estava orgulhoso do amigo.

Foram em uma Van fretada naquele 22 de março de 2009, Vitor foi o último a chegar, atrasou porque foi almoçar com a namorada Beatriz. Estavam indo Vitor, Marcel e o irmão mais novo de Marcel, Eurico. Vitor se lembrava deste último como um pivetinho que curtiam zoar, mas já era um homem feito e iria acabar casando bem antes de Vitor.

Ficaram em um boteco algumas horas antes de entrar no Jockey Club, onde seria o show, beberam cerveja e colocaram o papo em dia. Marcel estava morando em Curitiba, bem longe de Vitor e sempre se viam esporadicamente agora.

A banda Los Hermanos abriu ao show e uma multidão gritava “Pedófilo!!!!”. Depois foi a vez do Kraftwerk entrar e aquilo não era mais um show, era uma aula de história da música eletrônica.

Começaram com The Man-Machine e durante todo o show, eles esqueceram completamente que era um show do Radiohead. Se a banda principal não pudesse se apresentar, aqueles velhacos imitando robôs já valia o ingresso. O show não foi curtinho, tocaram 13 músicas no total, passando pelos grandes sucessos da banda como Tour de France e Radioactivity, mas foi na primeira música do Bis que Vitor foi a loucura quando tocaram The Robots.

We're functioning automatic
And we are dancing mechanic
We are the robots
We are the robots
We are the robots
We are the robots

Era assim que Vitor andava vendo a humanidade, todos ligados no automático, todos como robôs sem emoções, sem sentimentos, frios como gelo.

Tocaram duas músicas depois, mas a mente de Vitor já divagava, olhando todas as pessoas a sua volta como autômatos, como seres mecânicos que não conseguiam pensar por si só. Será que estava sozinho no mundo?

Até hoje a resposta que guarda dentro de si é “sim”.

Gustavo Campello

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

O CULTO À SERPENTE



“A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos que o Senhor Deus tinha formado. Ela disse à mulher: “É verdade que Deus  vos proibiu comer do fruto de toda árvore do jardim?”. A mulher respondeu-lhe: “Podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: Vós não comereis dele, nem o tocareis, para que não morrais.” – “Oh, não! – tornou a serpente – vós não morrereis! Mas Deus bem sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão, e sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal.””

Esperta a serpente, ludibriou os homens que era e ainda são idiotas, que são ingênuos perto dos joguetes de seres muito superiores a eles. Depois da ludibriação da serpente a humanidade sempre esteve em apuros. Eu não acredito em Adão e Eva, como não acredito em nenhuma frase do livro de Gênese, mas esqueçamos o que eu acredito ou deixo de acreditar, deixemos de lado, por um momento, no que acreditamos ou deixamos de acreditar e levemos o livro de Gênese a sério, vamos supor que ele é real, que tudo aconteceu exatamente como está ali, mesmo que não faça sentido nenhum.

Então se tudo for verdade a serpente atuou lá em Gênese e ficou quieta até então? Nunca mais tentou ludibriar a humanidade? Ficou de boa na canoa?

É o ano de 382 e o Papa Dâmaso I é o único homem acordado na madrugada daquele dia durante o Concílio de Roma, ele olha para sua mesa onde monta uma primeira lista dos livros que a igreja considera santos e que entrará futuramente em um livro que será chamado de Bíblia.

- Confuso? – diz a serpente de maneira safa se aproximando do Papa.

- É um trabalho cansativo – o Papa olha para a serpente, que conhece faz tempo, um ser que sempre lhe ajudou e que toma por um anjo – mas acredito que Deus irá me ajudar através de ti não é mesmo?

- Não lhe ajudei em nome Dele sempre? – a serpente sorri.

Mal sabe o Papa que esta mesma serpente ajudou Flavius Valerius Constantinus durante o Concílio de Nicéia há 57 anos atrás e que desde então vinha formando a Bíblia conforme seus planos. Já vinha há anos preparando também Jerônimo de Estridão, um sacerdote que serviria a seus propósitos, para traduzir os pergaminhos do grego e hebraico ao latim para popularizar ainda mais o “livro santo” que tanto trabalhara para produzir. Seus planos eram metódicos, sempre pensando no longo prazo, pra quem tem milhares de anos de vida e mais milhares de anos por vir, era um trabalho relativamente simples.

A Bíblia foi criada e a religião deturpada: guerras, fogueiras, torturas, mais guerras, estupros e inúmeras atrocidades foram e são cometidas até hoje em nome de Deus e de Cristo. Tudo usando a Bíblia como propósito. Ninguém liga se o que está escrito lá faz sentido ou não, ninguém liga se Jesus disse que era pra amar o pecador, o foco é no que pode e não se pode fazer, o foco está sempre no que a serpente reescreveu. Ninguém liga se Jesus tratava as mulheres como iguais, o foco é no texto reescrito pela serpente onde a mulher deve ser submissa. Ninguém liga pras contradições, cada um pega o que bem entende ali... Se a palavra fosse única, haveria apenas uma religião cristã e não um monte, cada uma com uma visão diferente da outra.

Sem saber, os religiosos continuam em sua fé, seguindo o Culto à serpente, seguindo preceitos que qualquer um que questionasse o que há de contradição no “livro santo” chegaria à verdade inabalável que ninguém quer enxergar. A iluminação está ao alcance de todos, mas a humanidade continua seguindo a serpente. Até quando?

Gustavo Campello
Texto em Itálico: Gênese - Capítulo 3, Versículos 1 ao 5

domingo, 5 de fevereiro de 2017

O INIMIGO DA MÚSICA



Sem nada para oferecer, o Edifício é como um dia de execução, o que rege esse mundo é tudo o que um corpo tem a oferecer.

Eu não sei quem sou, pois nada é algo, pois tudo o que eu sou é a única coisa que os Duendes Mecânicos não conseguem ludibriar, mas eles fazem como em aulas de física que algumas pessoas queriam esquecer, pois fazem cada vez mais sentido. Meu único problema é a bebida, pois é quando estou constantemente na cabeça dos Duendes Mecânicos.

Por sentido nenhum jamais irei sorrir, pois me deixam cada vez mais louco esses Duendes, mas não existe o quem somos e fumando um procuro sentido apenas em leis relativas. O fluxo dos Duendes Mecânicos é uma tremenda piada quando se sabe das coisas. Morrendo um pouco eu continuo bebendo, o que alivia um pouco, mas eu queria poder sentir que essa batida minha não é uma piada.

Fazer as coisas direito é algo que não deixou aquilo em que acredito, Bram nem imagina. Fazem eu ser outra pessoa, estão me mudando esses filhos da puta. Saber disso já é algo que sei faz tempo. O horror é insuportável. Nem meu orgulho próprio criado por cientistas é um ritmo que pode mudar. Não queria, mas nem isso faço, viver no Subterrâneo como um herói, isso é algo realmente pra quem sonha, porque aquilo lá embaixo, a todo momento, existe pensamento e um sentido aparente. Nossos pensamento, em algum momento ou a todo momento, irão sumir. Seria interessante para que eu pudesse seguir em frente.

Você pode ser eu, pois os Duendes Mecânicos seguem leis absolutas em sua casa, não tenho culpa por ser estúpido. Eles são os vilões. Bêbado e morrendo como um gambá com um cigarro no cu só de sacanagem. Mosquitos que picam escrevem sobre amor, sobre ter câncer na minha pele, meu cérebro cheio de marcas porque a Damis foi embora.

Guerra e paz, é isto que sou, mas tentam roubar isso de mim, ou não. A qualquer momento podemos, em todas as noites, sermos dissecados. Todos os dias, em todos os dias mesmo, o outro sem pensamento estará dentro de nós mesmos. Me foderam o tempo todo, pois não querem dar pra mim essas coisas, podiam pelo menos me oferecer um amor, mas então me vejo neste mundo o tempo todo lutando contra algo que se chama música.

Gustavo Campello