sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

ENTRE OS SEGUNDOS DO RELÓGIO



Ficava boiando na piscina, olhando para cima conseguia ver nuvens bem brancas, bem longe, quase em outro mundo. Elas estavam lá em cima sendo contempladas por Vitor, o vento as desmanchava e formavam novas formas. Ele sempre via velhas nas nuvens, como aquelas bruxas de desenhos animados, com narizes pontudos e caras maléficas.

Seu ouvido estava dentro da água e o silêncio era absoluto, gostava disso, era como se tudo que estava acontecendo tivesse simplesmente parado, alguém tinha apertado pause e até a gravidade parou de funcionar, Vitor vivia entre os segundos do relógio naquele momento.

Sua vida era uma grande piada, se odiava tanto que afastava todas as pessoas com quem se importava, mas isto não importava naquele momento, porque nada importava naquele momento, o cheiro de cloro era claro e vinha forte da água. Seu cabelo, que estava crescendo cada vez mais depois que seu barbeiro havia morrido, balançava na água e era como se pudesse sentir cada fio, cada movimento da água. As aranhas podem sentir o movimento do ar com seus pelos ao redor do corpo e antever qualquer ataque, por isso elas são tão rápidas... Vitor era naquele momento uma aranha d’água, seus cabelos podiam sentir todo o movimento da água.

Fechou os olhos e sentiu o silêncio absoluto, o vazio absoluto, a ausência de tudo... Era quase a inexistência, entre aqueles segundos do relógio ele simplesmente não existia e gostava daquilo.

Não estava feliz.

Não estava triste.

O sentimento simplesmente não existia.

Nada existia.

Nem as nuvens que estavam a sobrevoar sua cabeça, nem as pessoas em seus trabalhos, nem a fome, nem sua avó morrendo em um quarto com uma sonda no nariz vitima do Alzheimer, nem as cagadas que já havia feito, nem a cerveja gelada em sua geladeira, nem Constance Amiot cantando para ninguém em seu computador, nem o infinito, nem o vazio, nem seus peixes no aquário, nem o cloro contaminando a água da piscina, nem seu corpo, nem seus pensamentos... Nada.

Abriu os olhos e foi como se os segundos voltassem a andar, seu coração estava apertado de novo, as pulgas voltavam a devorar seu cachorro, o PH do aquário tinha que ser controlado. Tudo parecia não fazer o menor sentido, como antes, e Vitor tentou atingir aquela inexistência novamente sem nenhum sucesso. Saiu da piscina, ouviu a música que vinha do seu computador, pegou uma cerveja gelada na geladeira e sentou no chão chorando sem saber exatamente por que.

Gustavo Campello

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

A MÃE DESGRAÇADA E SEU FILHO FEDIDO



Vitor não entendia porque sempre que ia de ônibus até a cidade em que seus pais moravam para uma visita, alguma desgraçada com uma criança de colo tinha que sentar ao seu lado...

“Nada contra desgraçadas com crianças de colo” – pensava ele – “mas porque as crianças tinham sempre que comer algum salgadinho fedido pra cacete?”.

Vitor estava cansado disso, seu azar crônico zoava cada vez mais de sua cara sempre que entrava em um ônibus.

- Oferece pro moço! – disse a mãe desgraçada pro garoto que estava em seu colo.

- Qué? – disse a criança com a mão toda melecada e a boca cheia de farelo amarelo.

- Você ta de sacanagem, né? – Vitor disse olhando praquela cena que parecia uma comédia do Ben Stiller.

- Algum problema? – disse a mãe tomando as dores do filho

- Minha senhora – começou Vitor se contorcendo de contentamento na poltrona pela chance que ela havia dado de ele desabafar – você não deve ter mais olfato, mas este salgadinho fede... Conseqüentemente o filho da senhora também está fedendo pra caralho!

- Grosso!

- Grossa é a senhora que está obrigando outro passageiro a passar por isso... Se por acaso eu vomitar no seu filho durante a viagem não me venha com reclamações.

A mulher ficou emburrada e fechou o salgadinho fazendo o menino abrir um berreiro.

Vitor preferia muito mais o barulho de uma criança chorando do que a cena do menino comendo aquela coisa fedida sabor queijo podre.

- Devolve o salgadinho pra ele! – disse um sujeito que tomou as dores do menino e não agüentava mais o choro lá atrás do ônibus.

- Troca de lugar comigo então, filho da puta! – gritou Vitor de volta.

Desafio aceito, o senhor trocou de lugar com Vitor, que depois disso pode desfrutar de um belo cochilo durante a viagem.

Chegando ao seu destino Vitor pode perceber a cena de uma mãe e um filho andando de mãos dadas, constrangidos e vomitados.

Gustavo Campello

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

A MORTE DE VITOR SCAGLIA



Então o mundo acabou... 2012 finalmente tinha chego como era o plano Dele.

- Todo mundo foi pra Luz divina da Fonte? – Deus estava feliz porque parecia que seu plano havia dado certo.

- Então... – o arcanjo estava meio sem jeito – Temos um probleminha...

- Probleminha?

- É... um sujeito não ta muito afim de ir...

- Um sujeito? – Deus estava sem jeito com a notícia de última hora – Que sujeito?

- O nome dele é... – ia dizendo o arcanjo

- Vitor, né? – Deus logo o interrompeu.

- Sim... Vitor... Como o senhor sabia?

- Eu sou Deus, caramba, uma hora ou outra eu acabo sabendo de tudo.

O arcanjo estava envergonhado porque sempre se esquecia deste detalhe.

- Então este Vitor não quer ir embora, certo... hummm... ele está aí fora? - O arcanjo fez que sim com a cabeça, tentando lembrar que ele sabia a resposta para a pergunta... as vezes era um saco trabalhar para Ele – Então mande-o entrar.

Vitor entrou, olhando pra sala meio esbranquiçada de fumaça branca, pensou que deviam queimar um fumo desgraçado naquele lugar.

- Então você é o sujeito que não quer ir embora?

- Não é bem por aí... só quero umas garantias antes de ir.

- Garantias?

- Sim, garantias... Como é este lugar que tão querendo me mandar?

- É um lugar de paz, harmonia, onde transcendemos para um estágio mais avançado de consciência, onde tudo está conectado e a felicidade é algo tangível que nos alimenta e só então percebemos que...

- Corta o papo furado – Vitor não tava muito aí pra isso – Tem cerveja?

- Cerveja?

- É... Tu é surdo? Tem cerveja?

- Você não vai querer cerveja pra onde vai...

- Peraí... Tu ta dizendo que não tem cerveja? Não to afim!

Deus e o arcanjo se entreolharam, ambos estavam um pouco constrangidos com Vitor ali.

- Vitor... – começou Deus – você reencarnou mais de mil vezes, não aprendeu nada com isso? Essas coisas materiais não deveriam...

- Eu nunca liguei pra coisas materiais, mas não vou ir pra um lugar sem garantias de retorno.

- Retorno?

- É, tipo, e se eu não gostar de lá? Falo com quem?

Deus percebeu que seu plano não estava indo tão bem, se uma pessoa de sete bilhões estava dando problema algo ainda não estava pronto, o jeito era restaurar tudo e ver no que dava. No dia seguinte o mundo foi restaurado como sempre havia sido, as pessoas foram retiradas da Fonte onde havia paz e harmonia, onde todos haviam transcendidos para um estágio mais avançado de consciência, onde estavam conectados e a felicidade era algo tangível que alimentava-os e só então perceberiam que...

Vitor acordou, tomou um gole da sua cerveja e queria que se fode-se tudo que não estavam bem... Afinal, tirando a cerveja, quase tudo se incluía neste grupo.

- Vá se foder! – gritou ao perceber que a cerveja estava congelada.

Gustavo Campello

sábado, 11 de fevereiro de 2012

DESISTA!



Vitor não entendia essa coisa de lutar até o fim, pessoas com a capacidade de não desistir nunca. Se ele contraísse um câncer ou algum problema cardíaco – Queria que tudo mais fosse pro Inferno – não ia ficar indo em hospitais fazendo quimioterapia ou arrancando o coração para colocarem outro no lugar.

Vitor era o típico cara sem problema nenhum em desistir, achava até honrado isso, não tinha medo de morrer e não achava que a vida era assim tão legal para lutar por ela até o último suspiro.

- A vida que se foda – dizia ele para Sam, o seu cachorro.

O animal devolvia um grunhido que Vitor tomava como uma concordância, pois ele só contrariava o dono quando soltava um barulho mais agudo.

Não tinha dó de pessoas com câncer que passavam a vida lutando com tudo o que tinha, achava até bonito, mas não dó. Se a pessoa tinha problema em entregar os pontos, problema dela, ele não via a coisa dessa forma.

Algumas guerras se ganham, outras se perdem. Achava muito mais válido tentar fazer as coisas que queria e se não desse... Paciência, não se pode fazer tudo afinal de contas, já tinha na cabeça que não ia conhecer o Taj Mahal ou o túmulo do John Wayne, mesmo porque conhecer o túmulo do velho cowboy não devia ter graça nenhuma.

Tinha poucas coisas que Vitor almejava, talvez por isso conseguia ver a vida sem muito apego. Suas metas eram simples naquele momento. Queria beber vodka na Rússia, beber cerveja na Irlanda, beber run em Cuba, tequila no México e publicar uns três livros em vida... Vinho na Itália ele já tinha tomado. Champanhe na França ele não fazia questão porque não gostava da bebida e gin na Inglaterra também não porque não gostava do país. Outra coisa que não constava no seu Álcool Tour era whiskey na Escócia porque só gostava de Bourbon.

Nem transar com a Luciana Vendramini constava mais em suas prioridades, gostaria muito, mas se era o destino passar por esta vida sem este privilégio... Paciência.

Tinha até medo de ler todos os livros do Hemingway, depois que acabasse ia restar um sentimento de vazio maior ainda. O vazio preenchia cada vez mais a vida dele, parece que a cada dia algo se perde, algo fica sem sentido, como se sua própria humanidade fosse perdida, queria virar um peixe e nadar em seu aquário, ao invés de água podiam colocar Velho Barreiro, ia engasgar aos poucos, a garganta queimando, os olhos ardendo e vermelhos, vendo o mundo escurecer aos poucos através dos quatro vidros a sua volta.

Queria desistir agora, mas ainda tinha tanta coisa a ser feita, queria apressar as coisas o mais rápido possível, mas agora não podia.


Gustavo Campello

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

EVERYBODY KNOWS


Todo mundo sabe que os dados estão viciados
Todo mundo caminha com os dedos cruzados
Todo mundo sabe que a guerra acabou
Todo mundo sabe, os bons perderam
Todo mundo sabe que a luta foi armada
Os pobres continuam pobres e os ricos ficam ricos
É assim que as coisas são
Todo mundo sabe

Todo mundo sabe que o barco está furado
Todo mundo sabe que o capitão mentiu
Todo mundo tem esse sentimento ruim
Como se seu pai ou seu cão tivessem acabado de morrer

Todo mundo conversando com seus bolsos
Todo mundo quer uma caixa de chocolates
e um longo cabo espinhoso de rosa
Todo mundo sabe

Todo mundo sabe que você me ama
Todo mundo sabe que você realmente me ama
Todo mundo sabe que você tem sido fiel
Ah, dar ou tirar uma noite ou duas
Todo mundo sabe que você foi discreto
Mas havia tantas pessoas que você tinha que conhecer
Sem suas roupas
E todo mundo sabe

Todo mundo sabe, todo mundo sabe
É assim que as coisas são
Todo mundo sabe

Todo mundo sabe, todo mundo sabe
É assim que as coisas são
Todo mundo sabe

Todo mundo sabe que é agora ou nunca
Todo mundo sabe que sou eu ou é você
E todo mundo sabe que você vive para sempre
Ah, quando você tiver feito uma linha ou duas
Todo mundo sabe que o negócio é podre
Velho João negro permanece colhendo algodão
Para suas fitas e laços
Todo mundo sabe

E todo mundo sabe sabe que a praga está chegando
Todo mundo sabe que ela está se movendo depressa
Todo mundo sabe que o homem e a mulher, nus
São apenas um artefato brilhante do passado
Todo mundo sabe que a cena está acabada
Mas haverá um medido em sua cama
Que irá expor
O que todo mundo sabe

E todo mundo sabe que você está em apuros
Todo mundo sabe pelo que você passou
Da cruz sangrenta em cima do calvário
Até a praia de Malibu
Todo mundo sabe que está desmoronando
Dê uma última olhada nesse coração sagrado
Antes que exploda
E todo mundo sabe

Todo mundo sabe, todo mundo sabe
É assim que as coisas são
Todo mundo sabe

Todo mundo sabe, todo mundo sabe
É assim que as coisas são
Todo mundo sabe

Leonard Cohen