segunda-feira, 30 de maio de 2011

A CACHAÇA



Era aniversário de José Marcelo, o melhor amigo de Vitor no clube em que trabalhava. Ambos eram como parceiros no trabalho, José Marcelo interpretava o policial bonzinho enquanto Vitor o policial malvado. Quando eles apareciam as crianças paravam de fazer bagunça na hora, tinham o maior índice de suspensão de clientes por mal comportamento e se orgulhavam disso.

Vitor foi até todos os funcionários que trabalhavam no mesmo setor do clube e foi fazendo uma coleta para comprarem um presente, tinha pegado uma boa grana, pensou no que comprar – uma cachaça – foi a idéia. José Marcelo adorava uma branquinha, Vitor que não era muito fã, aprendeu a apreciar nas saídas com o amigo.

Vitor usou o dia de sua folga para ir até uma loja de bebidas finas que tinha na cidade, bem longe de sua casa. Pegou o ônibus, andou uns 20 minutos por causa do trânsito e chegou na loja que era um paraíso. Gin, Whiskey, Run, Cerveja, Tequila, Cointreau, Cachaça e uma infinidade de outras bebidas. Comprou a cachaça mais cara que o dinheiro que tinha podia comprar, ela vinha de um alambique de renome. Voltou pra casa depois de andar mais 30 minutos de ônibus com um trânsito desgraçado e chegando próximo ao seu apartamento viu Walter, seu amigo, ao longe.

- Hey Vitor! – gritou Walter.

Vitor foi cumprimentar o amigo e tirou a sacola que carregava a cachaça da mão direita para a mão esquerda, porém a sacola escorregou e a garrafa se quebrou inteira levantando aquele cheiro de álcool que era tão agradável para Vitor.

- Maldição! – disse Vitor.

Disse tchau para Walter rapidinho e voltou a pegar o ônibus de volta para a loja, 40 minutos depois estava lá puto da vida, comprou outra cachaça com o próprio dinheiro, embalou a bebida como se fosse um filho recém nascido e voltou para casa depois de 50 minutos. Chegando lá tomou um banho para ir ao bar encontrar José Marcelo. Sempre se encontravam para beber no final da tarde já fazia alguns meses.

Chegou lá com a sacola toda chique da loja e deu o presente para o amigo.

- Feliz aniversário!

- Porra, não precisava de presente – José Marcelo abria o pacote, quando olhou a cachaça logo disse – pensando bem, precisava sim!

Ficamos olhando aquela cachaça com uma vontade louca de beber, o dono do bar disse que teríamos que pagar a rolha para abrir ela ali.

- Mas garrafa não tem rolha meu filho – disse Vitor puxando briga.

- Então vai ter que pagar a tampa – disse o garçom com cara de bosta.

- Desencana – José Marcelo tentava apaziguar a situação como sempre dando uma de policial bonzinho – vamos tomar nossa cerveja e depois vamos pra casa abrir essa branquinha.

- Tudo bem – disse Vitor vencido – é seu aniversário, você decide.

O garçom se afastou com cara de vitorioso que fez com que Vitor fizesse uma careta, José Marcelo ria olhando a garrafa da cachaça na sua mão, depois a guardou na caixa, embalou ela na sacola como se fosse o seu filho recém nascido e foi pendurá-la na lateral de sua cadeira, porém a sacola escorregou da cadeira e a garrafa se partiu no chão levantando aquele cheiro de álcool que era tão agradável para os dois.

- Filho da Puta – disse Vitor não acreditando na situação – se eu te contar o que me aconteceu hoje...

Gustavo Campello

terça-feira, 24 de maio de 2011

O TERCEIRO SHOW DO SUPERCHUNK, A APOSENTADORIA DA CAMISETA DO KURT COBAIN & O SANGUE DOS ANOS 90 AINDA NA VEIA



Vitor estava indo assistir ao seu terceiro show do Superchunk no Brasil, tinha orgulho de dizer que estava presente no primeiro show deles por aqui em 1998, foi sozinho, em São Paulo, fez alguns amigos, pegou o telefone de uma garota, porém nunca teve coragem de ligar de volta. Ele era assim. Tímido. Lembrava das bandas de abertura, Pin Ups e Wry, ambas detonaram. Quando o Superchunk entrou foi do caralho! Parecia que pessoas caíam do teto, seu rosto foi acertado por tênis, cotovelos, bundas e bocetas. As vezes ele nem sabia se estava em pé mesmo ou de ponta cabeça. Acertou um ombro no queixo de uma garota que teve a língua partida e saiu correndo pra enfermaria. Eram os melhores anos de sua vida, vestido todo de preto, suando bicas e aproveitando o show. A melhor parte foi quando a corda do baixo da Laura Ballance estourou no meio de Precision Auto e a banda ficou improvisando até ela colocar novas cordas, afinar as mesmas e voltar pro mesmo ponto onde a música havia sido interrompida.

O segundo show no ano 2000 foi também muito bom, Jorge e Marcel haviam ido com ele, estavam comendo um cachorro quente antes de entrarem e na fila perceberam que a banda estavam na frente deles sendo barradas porque não tinham ingresso – We Are The Band! – dizia Mac McCaughan para o segurança que não entendia nada do que ele dizia. O Show teve só grandes músicas e Vitor pode voltar para casa cheio de hematomas e com um autógrafo da Laura Ballance no CD Here’s Where The Strings Come In que conseguiu depois do show com a ajuda de Jorge.

Agora era o ano de 2011, tanta coisa havia acontecido, era estranho ir ver o Superchunk de novo, durante o show foi como se tivesse se transportado para aqueles idos anos 90. Estava usando aquela velha e surrada camiseta com o rosto do Kurt Cobain estampado em preto e branco. Quem conheceu Vitor naquela época com certeza o viu vestindo esta camiseta, era quase como um uniforme. Tinha escolhido ir com ela porque era hora de aposentá-la, talvez a colocasse em um quadro como havia sugerido Beatriz. Iria sentir falta daquela camiseta como sentia falta do passado. Se ele parasse pra pensar direito talvez não sentisse falta do passado, porque ele nem foi tão bom assim, mas era bom fantasiar somente com as coisas boas. Sentia saudades até de lembrar-se do desespero de nunca conseguir pegar nenhuma garota em nenhuma festa.

O terceiro show do Superchunk acabou, os anos 90 também e o mais estranho de tudo é que ele não estava com nenhum hematoma, nenhum pé ou cotovelo o havia acertado e a Laura não era mais gostosa, foi então que se deu conta de como as coisas haviam mudado.

Gustavo Campello

sexta-feira, 13 de maio de 2011

UM DIA DEPRIMENTE



Vitor acorda deprimido todas as manhãs, é um estado natural matinal, porém existem dias piores que outros. Se levanta, vai se olhar no espelho, então lembra que não existe mais espelho no banheiro, deu-lhe um murro em algum acesso de fúria. Vai até a cozinha, mas logo é atacado por uma ância incontrolável devido a uns mofos e gosmas que se acumularam em alguns pratos sujos nos últimos meses. Ele fecha a porta da cozinha rapidamente e esquece de pegar a cerveja na geladeira, agora é tarde, jamais conseguirá entrar ali de novo sem vomitar.

Desencana da cerveja e vai checar seus e-mails, daí lembra que o computador está quebrado, já faz mais de uma semana, amaldiçoa seu apartamento, chuta alguma coisa e sai dali. Chegando no elevador ele percebe que está de cueca e volta pro apartamento pra colocar alguma roupa, restam poucas limpas, nem tudo ainda está perdido.

Resolve não ir no trabalho hoje, está muito deprimido e não conseguiria agüentar sua supervisora enchendo o saco porque ele não faz nada, mas o problema nem é ele, o problema é que não tem nada para se fazer em um clube enquanto o tempo permanece gelado.

“Devia era ir pedir demissão” – pensa – “não preciso disso, vivia muito bem sem dinheiro antes, posso viver de novo”.

Passa por uma livraria e compra um monte de livros, de Calvino a Dostoievski, ele fica assim quando está deprimido, compra um monte de coisas como se fosse uma mulherzinha num shopping.

Chega em casa, arruma os livros na prateleira, separados por escritores, Calvino fica ao lado do Burroughs e Dostoievski fica em uma prateleira só dele. Garcia Márquez divide uma com Kafka.

Vitor senta na cama, fica olhando a estante e passa o resto do dia chorando sem saber exatamente porque se sente assim de vez em quando.

Gustavo Campello

sexta-feira, 6 de maio de 2011

BRINQUEDO DE ADULTO



Vitor pega uma faca na cozinha, é a mais nova, lustrada e afiada faca que ele possui. Ele olha o cabo de madeira, os botões metálicos que o prendem a lamina e observa os contornos da madeira, sente a textura do que foi uma árvore um dia. A lâmina reflete a luz da sala, porém seu reflexo não é muito nítido. Ele encosta o dedo na lâmina e sente o dedo gelar, pressiona e sente o dedo cortar, o sangue escorre na horizontal até a palma da sua mão.

Ele olha para o apartamento bagunçado, todo bagunçado, parece que a única coisa que continua intacta na sua vida é o aquário, mas mesmo assim percebe que todas as plantas estão praticamente mortas. Decide que na sua próxima folga vai limpar ele todinho. Volta a olhar para a faca e lembra-se do trecho de um conto que lera.

“Eu tracei uma cicatriz, pétalas peroladas, em minha testa. Sim, marquei minha mágoa e minha fortaleza no rosto, desprezando um lugar entre os 99%, aqueles perfeitos e sem marcas desde o nascimento.”

“Se eu fizer um corte no meio do peito” – divaga Vitor – “Será que a dor física supera a dor mental?”

A faca é tensionada no peitoral, a carne vai rasgando, uma música do Atari Teenage Riot está tocando no último volume, seu grito é camuflado, se mescla a música, o sangue escorre e pinga no azulejo do banheiro. Ele nunca havia percebido que o piso não é branco e sim de uma cor amarelada.

“Como eu não poderia? Como poderia das as costas para os intencionalmente deformados, os atrofiados de propósito, pessoas de brinquedo que nos ensinaram a criar como animais domésticos?”

Então vem o alívio, por uma fração de segundos toda a dor vai embora, nenhuma preocupação, nenhuma solidão, nenhuma dor, nenhum desconforto. A ferida vai começando a arder bem aos poucos, quase imperceptível, como uma coceira que não nos incomoda. Quando a dor atinge seu ápice tudo retorna com mais força, a preocupação, a solidão, a dor e o desconforto.

Mas aqueles segundos são o que importa, aquele tempo ridiculamente pequeno em que tudo se dissipa, se esvai como fumaça entre os dedos. Aqueles segundos já fazem a vida valer a pena, Vitor pensava que nunca iria se sentir assim, livre de tudo e por alguns segundos alcançou o que buscava.

A faca ainda está em sua mão, que aperta firme o cabo de madeira, a lâmina esta vermelha e o sangue pinga até formar uma poça de sangue que se mistura ao tapete vermelho. Vitor se olha no espelho, não gosta do que vê e o quebra com um murro.

Mais sete anos de azar.

Gustavo Campello
(Texto em Itálico retirado do conto Eu Fui Uma Engenheira Genética Adolescente de Denise Angela Shawl)

quarta-feira, 4 de maio de 2011

SE EU MORRESSE HOJE



Se eu morresse hoje, não teria lido todos os livros que tenho vontade de ler, não teria conhecido a Irlanda, não teria visto um jogo de baseball ao vivo, falando nisso, não teria em toda a minha vida visto o meu time, Cleveland Indians, ganhar o World Series, justo neste ano que achei que eles tinham alguma chance. Não teria visto neve, o mais engraçado nisso é que já morei do lado de alpes na Europa. Não teria andado em um submarino, nem navegado pelos sete mares a bordo de um navio qualquer, não teria visto um iceberg ou um urso polar. Não teria um autógrafo do Keith Giffen ou apertado sua mão. Não teria tido um cavalo com o nome Duke, nem vivido em uma casa de madeira em uma chácara qualquer no meio do mato. Não teria visto o homem pisar em Marte, nem em qualquer outro planeta, mas pensando bem, acho que nem acredito que ele tenha pisado na lua. Não teria visto o filme do Lanterna Verde, nem o próximo filme do Tarantino. Não teria terminado o meu primeiro livro, nem experimentado heroína. Deixaria para trás o ultimo capítulo do seriado Gótico Americano, que eu nunca consegui assistir. Não teria dito para as pessoas que amo o quanto elas são importantes para mim. Não teria chegado a uma conclusão plausível sobre o sentido do filme Estrada Perdida. Morreria antes de Leonard Nimoy e definitivamente muito depois do meu ídolo John Wayne. O último filme que eu teria assistido em vida seria Terra Bruta de John Ford e o último livro lido teria sido Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos de Ana Paula Maia. Sobraria inúmeras pílulas do meu antidepressivo. Jamais aprenderia e entenderia exatamente a nova norma gramatical estabelecida. Minha ultima refeição seria um cachorro quente e uma cerveja e meu apartamento continuaria bagunçado. Não teria gasto todo o meu ultimo salário e ainda sobraria mais de duzentos contos do meu vale-refeição. Não teria matado ninguém, mas ao menos seria responsável por muitos holocaustos entre as formigas. Teria desperdiçado muito tempo deprimido pensando em como o mundo em que vivemos é um bastardo filho da puta. Teria partido desta pra melhor sem ao menos bater uma punheta nas ultimas duas semanas. Minha última conta de luz ainda não estaria paga, já estava bastante atrasada. Jamais teria dito ao Paulo Coelho que a literatura dele é um lixo, apesar de gostar das músicas do Raul Seixas que ele compôs junto. Nunca iria ter entendido porque os livros de auto-ajuda vendem tanto ou porque o Senhor dos Anéis é um sucesso tão grande. Deixaria uma coleção de DVDs, quadrinhos, livros e pornografia impressionante. Nunca teria tirado o dente do siso ou amputado algum membro, acho que ia gostar de ter um gancho no lugar da mão ou um pedaço de pau no lugar da perna. Nunca teria andado de helicóptero ou pulado de pára-quedas. Não teria vencido meus medos de escorpião e do ET do Steven Spielberg. Iria embora sem ao menos saber quem era o atual presidente da Rússia ou o Primeiro Ministro da Inglaterra, não veria jamais a Irlanda unificada. A fome não teria sido erradicada, mas aí é pedir demais, ou não? Não lembraria com qual personagem teria jogado pela ultima vez Street Fighter.

Daria pra continuar escrevendo até amanhã, mas será que o amanhã vem?

E você?

E se você morresse hoje?

Vitor Scaglia