quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

ROCK IN RIO III (2º SÁBADO)



Era o dia 20 de janeiro de 2001, Vitor nem imaginava que era o aniversário de quatro anos da sua filha. Filha que nem sabia que existia, que viria a conhecer só no ano seguinte. Era também o segundo sábado do Rock in Rio III, ele voltou para o Rio de Janeiro, desta vez com seu amigo Marcel. Havia acabado de conseguir um emprego na TelPhone S.A., uma empresa de celulares, começava a trabalhar na semana que vem.

Ele e Marcel foram em um ônibus sem ar condicionado, dos mais baratos. Depois do sábado anterior, não queria mais ser congelado durante horas na estrada. A primeira banda a tocar foi os Engenheiros do Hawaii, Vitor conhecia bem a banda, vivia indo em shows deles, entrava nos camarins e o vocalista Humberto Gessinger certa vez disse para Vitor que ele era a única pessoa que conhecia que havia nascido no mesmo dia que ele, mas tudo isso é assunto pra outra crônica. Vitor estava inclusive com a camiseta azul da banda que tem até hoje que havia ganhado de seu primo Giorgio.

O segundo show foi do Kid Abelha, era uma banda que Vitor e Marcel curtiam, mas definitivamente foi um dos piores shows que assistiram na vida. Eles não tinham a menor presença de palco, um show morto, sem empolgação nenhuma. Paula Toller estava linda, como sempre, e era só por causa disso que o show valia alguma coisa. O público parecia que estava morrendo, os casais se beijando e tudo parado. Acho que foi no show do Kid Abelha que todo mundo tirou uma pausa pra jantar.

- Agora é o show da Elba Ramalho com o Zé Ramalho – disse Marcel.

- Eles são parentes? – perguntou Vitor.

- Acho que são primos.

- Não são irmãos? – não estavam muito empolgados pra esse show, afinal estavam no Rock in Rio, o que cantores de MPB que misturavam um estilo nordestino tinham haver com rock? Queriam um show pesado, com o bom e velho rock ‘n roll.

Entraram no palco e definitivamente foi um dos melhores shows que Vitor já teve o prazer de assistir. O som estava pesado, eles conseguiram se moldar muito bem ao público que tinham, presença de palco impecável, não decepcionaram ninguém que estava ali. Acho que a maioria das pessoas foram pegas de surpresa com o show, foram fisgadas na hora. Elba e Zé simplesmente detonaram para a surpresa geral da nação. O público pulava, nem parecia o mesmo que estava acompanhando ao show morto do Kid Abelha. A galera foi à loucura, acho que até os músicos ficaram surpresos com a recepção (lembrando que o chato do Carlinhos Brown foi recepcionado com uma chuva de garrafinhas plásticas uns dias antes).

E assim terminaram os shows nacionais do palco principal, ainda assistiram a uns caras irlandeses em outro palco, mas Vitor não lembra mais o nome da banda. Ia começar as atrações principais, Vitor e Marcel foram adentrando no meio da multidão, rumo à grade.

Gustavo Campello

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

TARIQ



Tariq é o baterista do Formigas de Mercúrio, o membro mais novo da banda, deve ter aparecido no Edifício há apenas quinze anos. Nunca se acostumou com a vida no Edifício, sempre buscou algo diferente, fora do habitual. Tocar bateria foi apenas uma de suas inúmeras fugas. Enquanto bate suas baquetas é como se golpeasse o próprio Edifício, como se esmurrasse a cara de todos os idiotas que vão Sábado à noite ao bar Enxame, onde eles tocam sempre às 22:15 em ponto. Como se pudesse destruir a fundação daquele lugar, abalar suas estruturas e colocar tudo abaixo, todos os infinitos andares.

As drogas são sua mais nova empreitada, qualquer tipo, contanto que consigam apagar esta realidade suja que insiste em tomar conta de sua percepção de mundo. Acordar, comer, tocar bateria, sexo, drogas e dormir.

Tomou aquela droga púrpura e foi para a lanchonete perto da sua casa, onde sempre faz suas refeições.

- Me vê uma torta de mirtilo e um café – pede ele pra sempre simpática garçonete enquanto pensa porque diabos uma pessoa iria querer ser garçonete no Edifício.

A droga bateu.

Tariq começa a sentir seus pés se movimentarem, primeiro lentamente até atingir um ritmo acelerado. Perde o controle dos pés enquanto eles vibram incessantemente. Parece o zunido de um inseto, as pessoas começam a reparar, ele se vira de lado para conseguir olhar seus pés que agora se metamorfoseiam em duas moscas. As pessoas gritam e saem eufóricas do local. A garçonete derruba a torta de mirtilo e o café no chão. Os pés de Tariq são moscas que tentam alçar voo. Incontroláveis, gigantes, vibrantes e monstruosas.

Tariq deixa o desespero tomar conta dele, suas coxas parecem uma massa de pão no liquidificador, vibram junto com as moscas gigantes que eram seus pés – flácidas – ele pensa, não sabia que suas coxas estavam tão flácidas para sacudirem desta maneira.

Duendes Mecânicos invadem o local, cortam seus pés que agora são moscas que saem voando até Tariq perde-las de vista. Derrubam o baterista no chão e abrem seu crânio enquanto ele grita. É o fim, está liquidado para sempre.

Aonde seus pés irão sem ele? O que irão comer para sobreviver? – é isto que pensa enquanto abrem seu crânio e deformam seu cérebro.

- Aqui está seu pedido, senhor Tariq – diz a garçonete se aproximando.

Tariq volta da viagem púrpura, olha para a torta de mirtilo e para o café na mesa bem na sua frente. A mulher se afasta ao perceber que ele está estranho, suor escorre pela sua nuca – foi uma viagem daquelas – ele pensa.

Seus pés não estão mais vibrando e estão no local de sempre, come uma fatia da torta e fica maquinando como vai conseguir mais deste bagulho. Precisa viajar mais.

Gustavo Campello

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

R.E.M.



“Todos os meus ídolos morreram de overdose” disse uma amiga de Vitor e Jorge certa vez, estavam em um bar e era tarde da noite. Vitor e Jorge se entreolharam, pensaram e Jorge falou:

- Os meus estão vivos e são tudo viado!

- Um brinde a isso – disse Vitor batendo o copo no do amigo.

Agora os dois amigos estavam lá no Rock in Rio III para ver a atração principal, um dos shows mais esperados durante grande parte da vida musical de Vitor. O R.E.M. finalmente estava vindo fazer um show no Brasil.

Michael Stipe havia assumido a homossexualidade fazia pouco tempo, entrou no palco com uma maquiagem azul cantando Finest Worksong. Aquele show era um sonho. O terceiro álbum que Vitor havia comprado na vida era o Monster do R.E.M., álbum que foi escutado compulsivamente durante muito tempo, um amigo pegou emprestado certa vez e sumiu, nunca mais viu o álbum ou o “amigo”.

Ele e Jorge estavam próximos à grade, não sabia mais onde seu primo Giorgio e a namorada estavam. A turnê era do álbum Up, com excelentes músicas, a primeira que eles tocaram do novo álbum no show foi Daysleeper e emendaram em The Great Beyond, que era uma música que gravaram para um filme com o Jim Carrey.

Michael Stipe se aproximou da grade e a mão de Vitor passou raspando na careca dele, quase consegue lhe acertar um tapão, por um triz. Ficou chateado pela chance desperdiçada.

O show durou 16 músicas, finalizaram com Man on The Moon, mas não podia ter acabado, faltava o bis. Voltaram tocando Everybody Hurts, a música mais sentimental de toda a história da música. Vitor chegava a chorar quando ouvia esta música de vez em quando. Foi realmente emocionante ouvi-la ao vivo.

'Cause everybodyhurts
Takecomfort in yourfriends
Everybodyhurts
Don'tthrowyour hand, oh, no
Don't throw your hand
If you feel like you're alone
No, no, no, you're not alone

Seguiu-se tocando Pop Song 89 e finalizaram com a melhor de todas: It’s The End of the World as We Know It (And I Feel Fine). Vitor tentou decorar esta música certa vez, colocava no repeat do discman que ficava ao lado de sua cama e dormia ouvindo ela centenas de vezes. No ano seguinte quando reencontrou Elize chegou a conseguir cantar a música quase sem erros, detalhe para o “quase”.

Na hora de ir embora Vitor e Jorge erraram o ponto de encontro, que era mais pra cima. Giorgio e Edith ficaram esperando no lugar certo um bom tempo, até que Jorge se tocou que eles estavam no lugar errado e foram correndo encontrar o primo de Vitor e sua namorada. Edith tinha que trabalhar no dia seguinte e estavam atrasados para chegar até a rodoviária de ônibus. Pegaram um taxi que pagaram uma fortuna e chegaram em tempo. Giorgio e Edith foram no andar de baixo no ônibus que era leito, Jorge e Vitor foram em cima onde era mais barato e pros “pobre”.

O ar condicionado estava forte pra caralho, Vitor não se lembra de ter passado tanto frio na vida, nem quando dormiu perto de um rio marcando menos nove graus quando morou na Itália. Pensava em abraçar Jorge enquanto Jorge pensava em abraçar Vitor. O frio era insuportável, sentia que uma estalactite crescia na ponta de seu nariz. Quando saíram do ônibus agradeceu pelo calor insuportável que fazia lá fora.

Gustavo Campello

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

O FANTASMA NO CENTRO DE CAMPINAS



Passei grande parte da minha vida morando no centro da cidade de Campinas. Acordava e comprava marmita em um restaurantezinho de esquina em frente à Igreja do Carmo, era pequeno e a comida era boa e barata, a mulher que fechava a marmita não gostava muito de mim porque eu enfiava muita comida e ficava difícil de fechar. Era preço único, com direito a um pedaço só de mistura. O lugar não existe mais, abriu um lugarzinho mais ajeitado com uma dona mais ajeitada. O sobrinho do dono que tocava o restaurante teve uma crise de depressão, não conseguia mais ir trabalhar, era gente boa, não sei se ainda tá vivo ou cometeu suicídio.

O Café Regina é ponto turístico tombado pelo patrimônio histórico da cidade, quantas e quantas vezes não ia até lá com minha ex-namorada? Foi lá que conheci o Alberto, um senhor de quase setenta anos que conversava de filmes antigos comigo. Morreu de câncer faz quase dois anos, tinha emprestado meu DVD do filme A Longa Viagem de Volta, dirigido pelo John Ford e estrelado pelo John Wayne, e ele havia me emprestado o DVD do filme Juramento de Vingança, dirigido pelo Sam Peckinpah e estrelado pelo Charlton Heston. Não sei se ele chegou a assistir ao filme que eu emprestei pra ele, eu ainda não assisti ao filme que ele me emprestou, sempre olho pro DVD na minha estante e me lembro do Alberto. Os olhos azuis que pareciam saber tudo do mundo me encarando, os poucos cabelos brancos penteados para trás. Nunca mais vou ter meu DVD de volta e nunca vou poder devolver o DVD dele.

O Brito (ou Britto), não me lembro se tinha só um T ou eram dois, também morreu. Já deve fazer quase uns quatro anos que ele teve um derrame e foi desta pra melhor, nunca mais cortei o cabelo com ninguém, virei meu próprio cabeleireiro. Deixei o cabelo crescer por um tempo, depois passei a gilete e deixei crescer de novo. Preciso arranjar um cabeleireiro novo, mas quero ver se vai acertar o meu cabelo como o Brito (ou Britto). A última vez que o vi estava cortando o cabelo do meu pai, meu cabelo ainda não precisava de um corte, já não estava bem e morreu pouco tempo depois.

Esta semana descobri sobre o Seu Francisco, era assim que todo mundo chamava ele: “Seu” Francisco. Ainda não morreu, mas teve dois AVC’s e está muito mal, foi lá pro Rio Grande do Norte onde tinha família. Ele era o zelador do prédio em que eu morava, sempre sorrindo, sempre elétrico, não parava nem um minuto quieto. Não consigo imaginar o centro de Campinas sem o Seu Francisco, ou mesmo o prédio em que eu morava sem ele falando do Palmeiras pra qualquer um que entrasse. Seu Francisco, palmeirense roxo (opa, roxo não, palmeirense VERDE), só falava do time do coração. Eu, corinthiano, era um dos seus alvos preferidos, junto com o Marcos, porteiro corinthiano gente boa. Encontrei com o Marcos esta semana e foi ele quem me contou do Seu Francisco. Agora o Marcos tá querendo ir embora pra terra dele, perto de Minas Gerais, e daí não vai mais sobrar ninguém no centro de Campinas que eu conheça ou que se lembre de mim.

E é assim que vou virar aos poucos o fantasma do centro, sem ninguém mais pra lembrar-se de mim. Todas as minhas memórias, de cada canto daquele lugar vão ser apagadas com o tempo. Nem o Milkshake que eu era viciado existe mais. Todos vão embora, e um dia, talvez, eu seja a lembrança de algum outro fantasma que já andou por ali.

Gustavo Campello