sábado, 19 de abril de 2014

NEM ÁGUA SALGADA OU DOCE COM UM ALTO TEOR ALCOÓLICO



O cavalo marinho vinha nadando naquela água escura já fazia algum tempo.

Ele andava em círculos em um pequeno recipiente de vidro, mas aquilo não era água salgada nem doce. Tinha um alto teor alcoólico e o cavalo marinho estava alterado, suas faculdades mentais não eram as mesmas.

O avestruz escondeu-se, mas não sabia mais de quem. Seu corpo estava para fora e sua cabeça se prendera em uma garrafa de vidro, dentro havia uma água escura que não era salgada nem doce e tinha um alto teor alcoólico.

- O que diabos faz aqui? – perguntou o cavalo marinho ao avestruz.

- Me escondo.

- Vai se afogar!

O avestruz não tinha pensado sobre isso, portanto até aquele momento havia respirado normalmente, mas o oxigênio agora lhe faltava. Estava sufocando pouco a pouco e sua cabeça não conseguia sair daquela garrafa.

- Mas que merda – disse o cavalo marinho em voz alta, pois pensava que além de estar preso ali teria que aguentar a cabeça de um avestruz morto.

O avestruz foi perdendo o ar aos poucos. Engasgou com aquela água escura e foi se embebedando como podia. Entrou em transe, engasgou. Morreu.

A cabeça do avestruz já estava em estado de putrefação alguns dias depois e o cavalo marinho estava se incomodando com a situação.

- Mas que merda – ele dizia e repetia – mas que merda!

Vomitava nos vermes que surgiam ali. Embebedava-se tomando aquela água que não era salgada nem doce e tinha um alto teor alcoólico. Aquele cavalo marinho já estava de saco cheio de ficar ali.

Bram percebeu que estava sonhando no momento em que interagiu com o cavalo marinho. Deu um salto pela boca da garrafa e mergulhou naquilo que parecia ser um Cabernet Sauvignon misturado com Merlot.

- Mas que porra – disse o cavalo marinho – não vai morrer aqui, já não me basta o avestruz.

- Mas onde é que eu estou? – perguntou Bram.

- Austrália – respondeu o cavalo marinho parindo um monte de filhotes por algum orifício que permanecia misterioso para Bram – mas que merda, eu não queria ser pai!

Bram acordou assustado. Onde diabos era Austrália? Levantou-se, cagou e não pensou mais sobre isto.

Gustavo Campello

sexta-feira, 18 de abril de 2014

A LENDA DO HOMEM QUE SOBE ESCADAS



O homem já sobe as escadas há um bom tempo. Passando por andares e andares do mundo Intermediário.

De vez em quando ele para em um desses andares para comer algo em algum lugar. Suas pernas nunca se cansam. Todos os andares são iguais para ele depois de tanto tempo subindo. Já não consegue identificar algo diferente nos andares em que para para comer algo. Até as pessoas parecem as mesmas, ele sabe que elas não são as mesmas, mas se parecem.

Deve passar mais de 200 andares por jornada até resolver descansar. É quando dorme encostado em uma das escadas que vai para cima se encontrar com o infinito. Ele quer saber onde o mundo Intermediário acaba. Deve estar subindo faz mais de mil e oitocentos anos terrestres, parando apenas para comer e descansar. Pelas contas do homem ele já deve ter passado por trezentos e sessenta mil andares. Todos iguais, cheios de pessoas, com lugares para comer, casas e músicas saindo de algum lugar.

Nada muda, tudo é sempre o mesmo, mas o homem nunca se cansa. Vai continuar subindo por mais mil e oitocentos anos terrestres se precisar. A curiosidade é maior do que qualquer outro impulso. Seu pau já nem se lembra mais do sexo, seu fígado já nem se lembra mais dos porres e seu cu já não caga faz tempo.

Algumas pessoas nem notam ele sempre subindo, em alguns andares ele se tornou uma lenda. Contam histórias sobre ele para os outros homens que se materializam do ar. Homens que tentam entender onde estão. Homens que tentam entender sobre o Deus-Fungo. Homens que tentam entender sobre os duendes mecânicos. Mas estes homens logo se desinteressam pelas perguntas e vão viver suas vidas como todos os outros homens.

O homem se lembra quando foi consumido pelo Deus-Fungo no mundo Anterior. Poucos se lembram disso. Quase ninguém se lembra onde estava antes de se materializar no mundo Intermediário. Mas este homem que sobe as escadas se lembra.

- Mas e se o mundo é um círculo? – um viajante lhe indagou uma vez – E se você já subiu tanto que chegou nos andares abaixo de onde você estava?

O homem ficou com esta dúvida e começou a fazer uma marca de tinta vermelha a cada 100 andares. Nos últimos quinhentos anos terrestres ele nunca chegou a encontrar uma de suas marcas vermelhas e recentemente desistiu de fazer estas marcas.

Mas e se ele chegar no fim do mundo Intermediário? O que ele vai fazer então? Sentar e descansar? Os andares são todos iguais e parecem nunca mudar. E se alguém está apagando suas marcas de tinta vermelha?

Ele sobre mais um andar.

E outro.

E mais outro.

Algo mudou. Este andar é diferente dos outros. Há menos pessoas, está mais vazio. Cinco pessoas se materializam em um curto espaço de tempo. Fazendo as mesmas perguntas de sempre. O homem está atônito agora, depois de tanto tempo um andar diferente. A população de pessoas é cada vez mais escassa. Até que não há mais pessoas, andares completamente vazios. Seu coração dispara e ele continua a subir rumo ao infinito lance de escadas. Revigorado, degrau a degrau, no silêncio. Sozinho.

Gustavo Campello