sexta-feira, 6 de maio de 2011

BRINQUEDO DE ADULTO



Vitor pega uma faca na cozinha, é a mais nova, lustrada e afiada faca que ele possui. Ele olha o cabo de madeira, os botões metálicos que o prendem a lamina e observa os contornos da madeira, sente a textura do que foi uma árvore um dia. A lâmina reflete a luz da sala, porém seu reflexo não é muito nítido. Ele encosta o dedo na lâmina e sente o dedo gelar, pressiona e sente o dedo cortar, o sangue escorre na horizontal até a palma da sua mão.

Ele olha para o apartamento bagunçado, todo bagunçado, parece que a única coisa que continua intacta na sua vida é o aquário, mas mesmo assim percebe que todas as plantas estão praticamente mortas. Decide que na sua próxima folga vai limpar ele todinho. Volta a olhar para a faca e lembra-se do trecho de um conto que lera.

“Eu tracei uma cicatriz, pétalas peroladas, em minha testa. Sim, marquei minha mágoa e minha fortaleza no rosto, desprezando um lugar entre os 99%, aqueles perfeitos e sem marcas desde o nascimento.”

“Se eu fizer um corte no meio do peito” – divaga Vitor – “Será que a dor física supera a dor mental?”

A faca é tensionada no peitoral, a carne vai rasgando, uma música do Atari Teenage Riot está tocando no último volume, seu grito é camuflado, se mescla a música, o sangue escorre e pinga no azulejo do banheiro. Ele nunca havia percebido que o piso não é branco e sim de uma cor amarelada.

“Como eu não poderia? Como poderia das as costas para os intencionalmente deformados, os atrofiados de propósito, pessoas de brinquedo que nos ensinaram a criar como animais domésticos?”

Então vem o alívio, por uma fração de segundos toda a dor vai embora, nenhuma preocupação, nenhuma solidão, nenhuma dor, nenhum desconforto. A ferida vai começando a arder bem aos poucos, quase imperceptível, como uma coceira que não nos incomoda. Quando a dor atinge seu ápice tudo retorna com mais força, a preocupação, a solidão, a dor e o desconforto.

Mas aqueles segundos são o que importa, aquele tempo ridiculamente pequeno em que tudo se dissipa, se esvai como fumaça entre os dedos. Aqueles segundos já fazem a vida valer a pena, Vitor pensava que nunca iria se sentir assim, livre de tudo e por alguns segundos alcançou o que buscava.

A faca ainda está em sua mão, que aperta firme o cabo de madeira, a lâmina esta vermelha e o sangue pinga até formar uma poça de sangue que se mistura ao tapete vermelho. Vitor se olha no espelho, não gosta do que vê e o quebra com um murro.

Mais sete anos de azar.

Gustavo Campello
(Texto em Itálico retirado do conto Eu Fui Uma Engenheira Genética Adolescente de Denise Angela Shawl)

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