domingo, 19 de abril de 2015

SEM CORAÇÃO PRA VOCÊ!



Ele ainda sente alguma coisa porque seu coração foi arrancado há apenas dez minutos. Sente o desespero correndo por todo o seu corpo, sente as lágrimas brotarem de seus olhos, sente saudades daqueles que nunca mais vai ver e sente repulsa por onde se encontra.

“Malditos duendes mecânicos!” – pensa antes de sentir medo por ver que já há vermes brotando de sua pele – “que lugar escuro é aquele?”.

Um trilho de trem logo à frente, do outro lado ele vê os outros sem-coração como ele, andando apáticos pelo lugar. O trem chega, ele tenta entrar, mas o maquinista não deixa.

- Sinto muito, cara – ele diz – mas nada de sem-corações no meu trem!

Os olhos do maquinista sofrem de heterocromia, é a primeira coisa que ele consegue perceber dele, mas é empurrado pra fora antes que possa dar outra boa olhada.

Sente seu peito formigando, sente sede e sente fome.

O desespero diminui como todo o resto. Seus sentimentos já estão abandonando sua alma.

Um duende mecânico passa por perto dele, sente um calafrio, mas já não tão intenso.

- Devolvam meu coração! – ele grita chutando o ser metálico, ninguém vira o rosto para observar a cena, ninguém liga. O duende mecânico leva em consideração o fato do homem ter perdido o coração há pouco tempo.

Um homem ao seu lado come os vermes que brotam de seu antebraço, sente vontade de vomitar.

O trem vai embora sem levar ninguém, quase sempre é assim, mas o homem não sabe e daqui um tempo nem vai perceber o trem chegando mais. O submundo, o subterrâneo, o porão, a dimensão da passagem, o portão, o caminho... Aquele lugar é conhecido por inúmeros nomes, centenas deles. Um lugar que leva a todos os porões de cada casa construída no Edifício. O homem começa a tentar raciocinar que diabos de lugar é aquele, mas sua cabeça já não pensa tão bem.

Enfia a mão no buraco que tem no peito, os dedos passam por onde antes havia um coração. Sente repulsa, mas a sensação é agradável.

Trinta minutos depois de perder o coração o homem já anda em meio a multidão, comendo vermes, sem saber onde está, sem sentir nada, completamente apático, talvez para todo o sempre. Se algum dia um duende mecânico se sentir misericordioso em relação a ele, então talvez ganhe outro coração e tenha uma segunda chance, enquanto isso irá vagar por ali durante uns bons anos.

E o maquinista continuará indo e vindo, levando alguns poucos afortunados, mas nunca trazendo ninguém.

Gustavo Campello

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